O caso é que Lupércio (ele detestava o próprio nome) abrira os olhos azuis num
humilde quarto de humilde casa da roça, arrancado do berço maternal, onde vivera nove
meses prisioneiro de um útero fértil, um útero forte, responsável pela gestação de nada
menos que dez rebentos entre varões e mulheres. Uma barriga maternal pródiga, cristã,
exuberante, em cujas profundidades criadoras jamais se ousara meterem-se ferros e
bisturis, senão que apenas as longas e nervosas mãos da tradicional parteira das
redondezas. Partos perfeitos, criaturas perfeitas.
Lupércio não poderia ser exceção. Berrou com toda a valentia, custou a arrefecer os
vagidos do contato com o mundo que o aguardava, e prometia, pouco depois enrolado,
esticadinho, naquela panaria limpa e branca com que as mães do sítio apertam em longa e
larga faixa o tiritante corpinho do mal-nascido, prometia, repito, crescer forte, bonito e
corajoso, como aliás, almejam todos os pais e mães que assim seja.
E cresceu, virou menino, descambou para a adolescência. A meninice viveu-a, poderse-
ia dizer, como a vivem todos os meninos da roça, no que se pode chamar de ambiente
doméstico e circundante. Não porém, a sua personalidade em botão. Desde muito cedo,
Lupércio, saudável de corpo, e muito mais de espírito, ouvia bem de perto o ulular da
caterva de instintos. Eram labaredas que lhe subiam dos pés, pelas pernas, pelo tórax, pelas
mãos, pela cabeça, rumo ao cérebro, onde se formavam fantasias imensas, onde vinham se
estadear fantasmas sexuais. Não eram poucas as vezes em que o pré-adolescente se perdia
a contemplar aves, animais, domésticos e selvagens, se unirem para o ato da procriação
natural. Aquilo lhe transmitia um calor aos olhos, algo que queimava o corpo de alto a
baixo, numa ânsia de imitar, de fazer. E no âmago de sua cabeça efervescente as figuras
das companheirinhas de escola, das vizinhas, até de jovens e moças de muito mais idade,
vinham amiúde se apresentar. Sonhando com o mistério que um dia se lhe poderia
desvendar.
O adolescente da roça, sabem os sociólogos e os sexólogos, tem multiplicados
exuberantemente seus instintos. Em toda a parte, se lhe oferecem oportunidades para
fantasiar mais e mais, aguardando com ansiedade o dia, a hora de poder fazer o que fazem
os animais domésticos e selvagens, dando assim vazão a essa força colossal e indomável,
que lhe queima o corpo e lhe atrapalha a alma, com mal compreendidas necessidades
biológicas, na busca de um alívio físico e espiritual que ainda não sabe bem como há de
conquistar e conseguir.
O estado da adolescência é terrível. O moço sente, vê, debate-se com os instintos,
mas não há como enfrentar toda essa pujança sem ferir pruridos de consciência, da fé, de
família, do mundo. Parecia a Lupércio que todo o universo lhe apontava o dedo
condenatório: não pode, não deve.
****
Um dia (que dias tremendos há na vida!) o adolescente Lupércio viu-se metido num
coletivo urbano, ao lado de desgastada mala lotada de roupas, cobertas, lençóis, um par de
tênis barato, escova de dentes, sabonete de coco. Partia. Dezessete anos. A desconhecida
vida de um internato religioso. Até quando? O que haveria de vir? Lupércio lembrava-se
apenas de engolir o nó da garganta e enxugar, com as mãos, um tanto ás escondidas, as
dificilmente escondidas lágrimas.
Seria o fim? Não sabia. Poderia sim, ser o fim daquela maravilhosa vida de infância
na roça, onde ficavam as árvores, os pássaros, as colinas, os colegas, amigos e
companheirinhas, as chuvaradas, as noites estreladas, os luares românticos, as plantações,
as caçadas, as colheitas, o terço em família, a felicidade de uma infância despreocupada e
feliz, aivada de surtos e sustos de instintos em ebulição.
****
O Internato! Casarão terrível a engolir adolescências para forjar, na disciplina e no
estudo, as incógnitas personalidades de amanhã! Lupércio espichou os olhos, ainda a
relampejar paisagens silvestres e roceiras, por aquelas paredes acima um, dois, três, quatro
pavimentos. As janelas em fileira indiana pareciam dizer-lhe “lascsiate ogni speranza o voi
che intrate”. Atrás daquele portal e daquelas janelas misteriosas que decerto jamais viriam
a ser ocupadas por aqueles que adentravam o internato, em gestos de espiar a rua e o
mundo, devia existir um outro mundo, completamente diverso e estranho do vivido até
então pelo jovem aspirante ao sacerdócio.
Se ao deixar os pagos natais já se lhe derrocaram, anos de vida, já entendia como
perdidos atos, gestos e pessoas daquele seu trecho feliz de vida, o que não lhe deveria
caraminholar a cabecinha ainda mal estruturada para mudança tão brusca, a visão daquele
edifício imenso, coalhado de mistérios, físicos e psíquicos, onde deveria colocar seus pés,
para um contrastante modo do viver, no seio de uma família estranha que não aquela
deixada nos cafundós do sítio!?
O convite daqueles portais era inexorável. Era um convite para mudar um destino! E
transpostos os umbrais atrás dos quais se lhe enclausuraria esse mesmo destino, Lupércio
sentiu um frio pelo corpo. Reagia-se-lhe a alma adolescente naquela manifestação física
capaz de dizer-lhe: “esqueça tudo o que ficou para trás! Esqueça a infância, as
brincadeiras, os colegas e as coleguinhas, a mãe, o pai, os irmãos, as paisagens, os
divertimentos, a vida roceira enfim. Deixe que sangre a hemorragia da saudade incurável,
que os perseguirá pelos dias afora”.
****
E assim se fez, porque assim estava escrito na página do destino! Deram-lhe uma
caminha de solteiro, um banquinho titubeante para criado-mudo, um 1avatório imenso,
longo e cheirando a todos os sabonetes.
Uma gaveta fixa numa estante à moda de guarda-roupa coletivo, cobertas simples
pouco adequadas à intempéries de um dormitório metido no sótão do grande prédio. Os
preparativos para as suas noites eram rápidos e repetitivos. Dormir era uma exigência
disciplinar. E no dia seguinte, mal o dia tingia de rubro o horizonte, uma sineta tenebrosa,
insensível, dramatizava o despertar daquela legião de adolescentes e jovens. E se iniciava
um ritual vídeo-tape de um e de outro dia, com longas horas de estudo, infindáveis horas
de aula, caínhas horas de recreio e muitas horas de silêncio e oração.
Todo programa ritmado e repetitivo não conseguira arrefecer na alma e no corpo do
adolescente aspirante, as exigências dos instintos. Passava noites em briga com eles. De
um lado a escalada cada vez mais apressada e forte do sexo exigente, de outro, a palavra
dos mestres e instrutores, condenando sumariamente aquela força incontestável e
indefensável que lhe energeizava o corpo. E a luta se travava intensa entre a ordem e a
disciplina, o pecado e o prazer. Noites mal dormidas, lembranças longínquas da infância,
remorsos e escrúpulos, o prêmio do céu e o castigo do inferno, aí presentes como um
pêndulo fantástico a tocar para frente as horas, os dias, os anos.
Os instintos, cada vez mais contundentes, cresciam. Os deveres e obrigações
cresciam também. De tal sorte que a luta era tremenda, travada na solidão das horas
noturnas ou nas longas horas dos silêncios dos estudos e dos recreios.
****
E os anos foram somando batalhas com derrotas e vitórias quiçá. Aproximava-se o
dia fatal da decisão vocacional. Lupércio temia a sua chegada, pois sabia que as forças dos
instintos superavam de muito as forças vocacionais. As lutas haviam sido muitas e muitas
as derrotas. Como esperar agora o advento de um auxílio tão forte capaz de levá-lo a
esquartejar, com a espada de luz da coragem e da valentia adolescentes, o inimigo há
tantos anos enfrentado e nunca, ou quase nunca vencido!?
****
O acaso decide. O acaso socorre em muitas oportunidades aqueles que não enxergam
mais uma saída para a solução de graves e íntimos problemas. Lupércio topara,
casualmente, com esse personagem, do qual se engendraria uma solução para aquela longa
e ingrata batalha dos instintos rebelados, dos instinto exigentes, dos instintos que querem o
que querem, dos instintos que lutam aos extremos para fazer valer sua vitalidade, sua
presença no homem, seu destino de elemento continuador de espécie.
O pátio do internato onde alunos dos mais variados cursos e oriundos das mais
variadas localidades, esparramava-se amplo e sombreado por figueiras frondosas. Sob elas
reuniam-se grupos de estudantes. E as árvores como que ouviam as conversas, os diálogos,
os debates, os cochichos entre aquelas bocas controladas e presas a uma disciplina rígida.
Foi quando uma grande folha, amarelecida, despencou do alto de copa e caiu, dançando,
entre os debatedores, passando rente ao rosto de Lupércio. Um relâmpago de pensamento
cruzou-se-lhe no cérebro e a boca murmurou:
- Ei, colegas, essa folha rolante é bem a imagem da minha vocação, do meu destino.
Amarela e ressequida, levada pela brisa, é como a sinto dentro de mim.
Poucas palavras, significativas palavras. O diretor de alunos ouviu-as e guardou-as
para com elas traçar o destino daquele lutador de instintos, de importantes instintos
humanos. E no recesso da cela convocara o indigitado aspirante e qual fora um raio
terrível, Lupércio ouviu:
- Então estás como a folha esvoaçante da figueira? Não queres mais ficar preso na
fronde deste internato, onde se cuida das coisas de Deus, com vontade e amor, dedicação e
empenho? Segue pois o trajeto da folha amarelecida que é andar de rastros no pó do
chão... voltarás para teus pagos, onde a consciência estará mais livre para essa luta de
instintos que dizes sustentar a tantos anos...”
O ultimato superior fatalizava-lhe o destino. Tinha a força de quebrar, como
dinamite, aqueles muros altos e intransponíveis que lhe cerceavam os passos para a talvez
aparente liberdade do mundo, onde supunha o aguardariam todas as liberdades corporais e
instintivas, transformá-las em armas para derribar ao pó o demônio daquela força profunda
que lhe vivia a atormentar os dias e as noites, o interior e o exterior da personalidade.
Aguardava-o um diverso retorno, depois muitos anos, àquele trecho da existência de
onde partira, sob o impacto de uma luta infrene, entre espírito e carne, entre virtude e
pecado.
E a ordem, o mandamento, partira não de um fato de enorme poder sobre o destino
das pessoas, sobre o seu próprio destino, mas de apenas um minúsculo e inédito
acontecimento trivial de uma folha de figueira, balouçante, despregada do galho da árvoremãe,
combalida e em agonia vegetal, rumo ao ignóbil destino de morrer de rastros na
frialidade e indiferença do solo.
Quantas folhas, no mundo, se despedem da fronde, esvoaçam por instantes entre o
azul e a terra, rolam pela areia, apodrecem ao vir primeira chuva, viram solo, sem que
ninguém, sem que olhar algum, lhes dediquem qualquer atenção, lhes sirvam de modelo de
vida, de solução vocacional, de diretriz para quem quer que seja! Ignoram-nas
simplesmente! E aquela, aquela estranha mas significativa folha de figueira a amarelecer,
por que haveria de aparecer em seu caminho, como se fora uma folha viva, inteligente,
mensageira, escrevendo na lousa dos acontecimentos pessoais de um brigar mourejante de
instintos, o que era preciso fazer, qual o caminho a seguir daquele átimo de tempo em
diante?
Qual o dedo milagroso que apertara o pedúnculo vegetal daquela folha entre milhões
de folhas de figueira, para num exato instante, inesperado mas valioso, ditar novo rumo
para uma alma em cujo seio se desenrolava, surda, oculta, dolorosa, uma batalha que só
neste momento viria a lume?
E depois de meio século de vida, quando a arte exigiu do seu personagem uma
história a contar?
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