Lino Vitti
Ninguém mais tem
dúvidas sobre o desarvoramento em que anda a humanidade. O preto já não é mais
preto, o branco branco mais não é. Coletiva e individualmente, homens e mulheres
não se entendem, pais e filhos, além de não se entenderem não se comunicam,
marido e consorte se desrespeitam com extrema facilidade, mestres e alunos não
afinam as responsabilidades. Tudo isso para embatucar mais e mais a cachola
pensante daqueles que, ainda (ainda?!) anseiam por um mundo tisnado por laivos
de felicidade. Desagregadas, social e internamente, as famílias se desmilinguam.
E cada lar (?!) vira foco de desavenças, discordâncias, incompreensões e mais
substantivos desse jaez.
Essas tiradas, moralísticas até certo ponto, provinham
da quiçá última boa cabeça-chefe
da família Júbia, ninho de tradições e convicções, um pouco ainda lambuzada por
velhos preconceitos, por desprezados princípios, por criteriosas intenções.
O comandante-famílial, o Júbia, condutor daquela
pequena nave social, pelos mares borrascosos do mundo, meteu a numerosa prole
dentro de um torniquete de moral religiosa, cívica e comunitária, conforme as
exigências das origens, conforme o exemplo dos antepassados, conforme a
dignidade obrigatória trazida até então pela bagagem do tempo. Isto o obrigava
a viver sempre no alerta, porque a sociedade, tachada de moderna, materialista
e anti-religiosa pelo velho Júbia, amiudava seus ataques ao reduto do defensor
da moral, sem rebuços, das convicções, a todo o custo.
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O Jubialito, um dos
filhos da récua patriarcal, às tantas daquela monotonia vivencial, assim
julgada por quantos gostavam de viver à moderna, à atualização sem termos da
vida e das inteligências, do espírito e do corpo, o Jubialito – repete-se –
resolveu (resolução orquestrada pela irmandade sequiosa de novidades) casar,
montar família, não só porque a idade se lhe avançava celeremente, acompanhada
pelo batalhão de exigências biofísicas, mas também por haver amealhado, graças
ao emprego de caixeiro-viajante, algumas indispensáveis economias.
Giselina, uma lindura do bairro, graciosa e estuante
de instintos – a escolhida – topou a parada casamental, mesmo porque os pais
não tinham como negar tão naturais e reais anseios da jovem casadoira. E assim,
realizou-se a festa do “conjugo vobis”, sob as bênçãos do Vigário, o aplauso da
sociedade e a inveja de muitas outras aspirantes a esse sacerdócio-branco, onde
às vezes se criam anjos, outras muitas, demônios terríveis.
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Lua-de-mel! Misteriosos dias de suposta felicidade que
seguem o mais importante acontecimento da vida dos jovens! Programa-se numa
localidade distante um quarto em geral de hotel; motel, não (porque
impressionaria mal os moradores do bairro e amigos dos conjugantes), um leito
convidativo entre paredes imunes a bulhas e a vozes, com luzes abafadas para
tornar tudo envolto numa penumbra crepuscular, um CD lânguido a musicalizar
baixinho a alcova comprometida, criados mudos camaradas em sua mudez, pijamas
perfumados e coloridos, talvez flores em algum canto propício, eis, em resumo,
o que constitúi o supra-sumo de uma noite, da primeira noite de uma
ansiosamente aguardada lua-de-mel.
E os comparsas do
sublimado acontecimento nupcial? Ele e ela?! A quantas anda a cobiça do moço? A
quantas anda a timidez da jovem? Não adianta negar, mas para quem vai virgem a
um ato tão especial, para quem foi educado na contenção familiar dos instintos,
há sempre a indecisão, o medo, o desconhecimento, a possível decepção! Ou a
dor, o pranto, a discordância! Diria eu, longe de Freud e caterva, que esse
momento é crucial, é um “ultimatum”, um ato de guerra a dois, travada longe do
mundo, longe dos olhos invejosos dos outros mortais, um gesto memorável, pois
se trata, nada mais, nada menos, do que vencer a virgindade, entregar o corpo e
alma ao domínio exigente dos instintos, para um futuro adiante, até que “a
morte os separe”, reza-se ao pé do altar.
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Alerta-se o leitor, caso estas linhas tenham a
felicidade de chegar até ele, que os jovens desta pequena história foram
ensinados pelo escola dos tempos em que não se aprendia nada sobre essas coisas
íntimas a que embora estamos todos sujeitos ou não um dia na vida. Os
comparsas, pois, desta elucubração contística, não fugiram às regras do seu
tempo, ou melhor, do seu ambiente. Nem por isso, entretanto, deixaram de
receber, em grau disperso, em proporções mínimas, por meios desconexos, os
ensinamentos contraditórios da tradição e do passado.
Há sempre alguém mais sabido, mais entendido, uma
comadre novidadeira, uma colega ou um amigo avançados que insinuam aos futuros
cônjuges formas e modos de destruir a finalidade primordial da união entre
seres.
Fosse hoje, a parafernália de meios de comunicação, de
escolas, de livros, de revistas, de jornais, de bocas-comadres, de exibição ao
vivo em teatros a até em praias, onde se cultua o nudismo, ter-se-ia incumbido
de ensinar aos nossos heróis luademelantes, como evitar traumas, dores,
temores, desconfortos e tristezas, dando lugar soberano aos prazeres da carne,
às alegrias, aos confortos, à beleza, primordiais condições para uma felicidade
duradoura a dois, e, depois, quiçá, a mais que dois.
Chegara o momento da
prática, empurrando para trás quaisquer teses e teorias. O momento era
grandioso! Era glorificante!
- A camiseta, pediu Giselina...
- ?!?!?!?!?!
- A camiseta, repetiu a jovem, já corada ao máximo e
encabulada com a ignorância do provável pai de seus filhos.
Jubialito, sob indícios de um valente suadouro, tímido
e atrapalhado, corre até a mala de viagem, remexe-a nervosamente, e com ímpetos
estranhos fuça de um lado, fuça de outro, descobre afinal a camiseta de
ginástica que, por via das dúvidas decerto, a preventiva mãe envolvera entre os
ternos e camisas para a primeira aventura conjugal do seu menino.
E com ar
triunfante, bagas de suor agora rolando cara abaixo, o estreante marital içou,
como um troféu, a camiseta, a solicitada camiseta, pela noiva ansiosa. Asas de
felicidade esvoaçavam pela –– assim vista nesse sonhado momento –– alcova
estufada de fantasias, de desejos, de possibilidades, de amor.
Era uma estranha
figura humana aquela no recôndito de um quarto de hotel, empunhando como
bandeira de vitória, leve e quase esvoante peça de roupa, rumo de uma
longamente esperada conquista, numa hora em que o animalismo da espécie perde
todas as noções da normalidade para enveredar por uma região totalmente
desconhecida, onde encontrar, quem sabe, a ventura para o resto da vida, quando
não o dissabor supremo do fracasso, do erro, do desprezo.
Ao sabor da brisa
gestada pela modernidade dos ventiladores, a camiseta erguida pelo mastro do
braço, lembrava bem um lábaro daquela guerra de esqueletos aguardada por
brancos lençóis, por cortinas de cambraia, por aquele céu adrede preparado para
uma noite de amor, do primeiro amor.
Do outro lado, o exército formado de um único soldado,
ou melhor, de uma única guerreira, não pareceu entusiasmado com a bandeira
desfraldada. Surpresa, aborrecida, carranca terrível (sabem vocês o que é
carranca de mulher ofendida e descontente?) Giselina repeliu o atacante
estupefato, e prorrompeu num choro convulsivo abafado pela alvura dos
travesseiros e gemeu:
- Não, tolinho, não é nada disso. É aquela coisa que
evita a gravidez.
- ?!?!?!?!
Concluindo, pode o contista escrever que foi mais uma
lua-de-mel fracassada. E fracassada, não porque houvessem faltado cenário,
decisão, vontade, esperança, desejo. Fracassada por um simples erro de
semântica gramatical, por uma troca singela de vocábulos, pelo uso indevido de
um diminutivo substantivado.
Evidentemente sob o impacto da emoção, a noiva que
(digo-o agora), não desejava a gravidez, e não estava ainda devidamente
familiarizada com o uso dos termos da modernidade matrimonial, balbuciou
“camiseta”, quando, nesse ponto culminante de sua vida, o certo e o que desejava
mesmo era o outro diminutivo gramatical de camisa.
Coisas da educação
sexual de hoje.
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