NOITES FANTASMAIS
Lino Vitti - 1 -
(Príncipe dos Poetas Piracicabanos)
E disse Jeová: “façam-se as trevas com todos os seus astros”! E assim se fez. As estrelas, a lua, os cometas, as constelações, enfeitaram as noites cósmicas, porque veio a Noite, larápia do Sol. E dentro das noites do mundo formataram-se os fantasmas apavorantes, e os fantasmas povoaram a Terra, ora em forma de assombração, ora em forma de saci, ora em forma de mula-sem-cabeça, ordinariamente vagando pelas estradas desertas, aterrando povoados a dormitarem, assustando sitiocas e fazendas, assaltando taperas e santas cruzes das estradas.
O sertão ressuma fantasmas! Quanto mais a solidão se apodera das distâncias ignotas noturnais, mais presente se faz o enigmático personagem fantasmal . E cresce, cresce, avoluma-se, avoluma-se o medo agarrado ao homem do sertão. E o sertanejo que “é antes de tudo um forte”, como dizia o Euclides da Cunha, assassinado por amar sua consorte, diante das trevas de uma estrada encurralada dentro da noite, fica magrinho, fraquinho , reduzido, como um caniço de brejo. E a tese euclidiana perde toda a sua imponência afirmativa. Porque o caboclo treme, suja as calças, foge diante de um foco de luz que caminha pelas encostas, ou se move pelos vales rurais, ou se do seio misterioso da mata o urutau solta a sua gargalhada fantástica ! E não só o caboclo, mas qualquer viajante deste universo, more no sertão ou viva na urbe, sói tremer e emporcalhar os fundilhos ao topar na escuridão soberana da noite uma bola de fogo movediça a esvoaçar pelo campo embrulhado pela cegueira da treva noturna.
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O pedreiro- lavrador Jair, apesar de suas mãos honestamente calejadas pela rusticidade profissional, tinha uma cabeça cheia de fraseado literário adquirido por seu próprio esforço, conquistado pela leitura contínua e estudada de livros, almanaques, revistas e
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tudo quanto escrito lhe fosse cair nas mãos. E desse contato com as letras, alimentado pelo ambiente rural da sua vida, saliente observador dos fatos e pessoas, vivente inarredável das noites da roça, Jair acabou pintalgando muitas laudas de papel em branco, com a criatividade de seu lápis. Admiravam-no os conterrâneos , pois não é raro surgir, como silvestre flor de maracujá, por entre gente dos cafundós do Judas , uma inteligência privilegiada como a de nosso personagem.
Por outro lado, o Jesuino da Silva, metido a intelectual daqueles sertões, não cansava de mexer com a literatice do quase vizinho Jair, e não se envergonhava de às vezes, quando o pseudo-escritor passava as noites longe da casa, pé-ante- pé, como um ladrão de terceira classe, ir bisbilhotar o “escritório” do amigo e contemporâneo, para desvendar que mistérios teria ele lançado nas rústicas folhas de papel sobre que vivia rabiscando, rabiscando, sabe-se lá o quê ? E numa dessas aventureiras invasões ilegais, digamos assim, o Jesuino descobriu uma breve mas gostosa história sobre um mistério que há muito tempo encucava a população do roceiro povoado. Lançou as mãos larápias sobre as laudas e, cautelosamente, sob a lamparina foi depois colocar a sua curiosidade sobre o que poderia ter saído da cachola do companheiro e amigo.
E viu, ou melhor, leu. Leu o que era a solução de um velho mistério noturno que há muitos anos embatucava a população . Não fora essa revelação de Jair , cronista caipira do bairro , e ainda hoje perduraria ignoto o fato, talvez para sempre. A menos que aquelas páginas rabiscadas e quase inintelegíveis, não passassem de uma brincadeira do “genial escritor” pedreiro. E Jesuino, assaltante de páginas cronísticas que jamais talvez viessem a lume, tornou-se um arauto delas e tornou possível que chegassem até nós. E o que teria descoberto o estranho ladrão de crônicas? Sigam o Jesuino ,
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concentrado, à luz da lamparina , na historiazinha encontrada nos papéis surripiados do pedreiro-escritor:
“UM CASO DE LOBISOMEM - O fato de acreditar depende de cada um de nós e todos temos o direito de crer ou não em alguma coisa. Muita gente afirma que lobisomem existe e até já viram com seus próprios olhos. Dizem que tem preferência pelas cocheiras e galinheiros, sempre à meia noite, na Sexta-feira, quando ele se transforma em lobo , cumpre o seu tempo, depois volta ao normal. Palavra de quem acredita . Aquelas pessoas que ouvem passos , barulhos, enxergam vultos e até conversam com os mortos. O mesmo acontece com os que vêem lobisomem .
Na pequena comunidade havia algumas parteiras para
servir a população e eram estas que faziam o atendimento das mulheres. Certa noite, numa Sexta-feira, uma mulher estava para dar a luz e logicamente o marido procurou a parteira do povoado cujo nome era Minca, num sítio vizinho. Partiu Minca a bordo de um carrinho puxado por um animal.
A família atendida acreditava na existência do lobisomem e comentavam que todas as sextas-feiras era ouvido um barulho no galinheiro e seria o tal de lobisomem que atormentava as aves galiformes e sempre levava consigo uma ou duas delas.
Enquanto Minca aguardava a hora do desfecho eis que surge o costumeiro barulho pelas bandas do galinheiro. A família como sempre assustada, pediu à parteira que ficasse em silêncio pois era a hora do lobisomem. Esta porém abriu a porta de vez , saiu apressada e foi até o galinheiro. Aí fechou a portinhola da casa das galinhas pela tramela do lado de fora. E gritou surpresa para o lado da casa, onde se acotovelavam os donos do galinheiro: “venham, o lobisomem está preso”. Apavorados todos se recusavam, mas Minca insistia até que os convenceu a chegar até lá.E à luz de um lampião, abriram a portinhola e lá estava, com a maior cara-de-pau o famoso lobisomem. E sabem quem era?
Nada mais, nada menos, do que o carreiro da fazenda que em todas as sextas-feiras ia fazer sua féria furtando as galinhas para saboreá-las no fim da semana. E esse foi mais um caso desvendado por Minca e fez com que a família nunca mais acreditasse em coisas do outro mundo”.
Jesuino embasbacou diante do que lera no manuscrito “roubado” do amigo. E como era também ferrenho crente dos mistérios fantasmais das noites roceiras, converteu-se . E hoje se lhe perguntam o porquê dessa mudança fantástica, responde simplesmente: “cá o quê... Lobisomem é gente mesmo”...
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