
Lino Vitti
Anda a humanidade ingurgitada de tragédias de todos os calibres, modos e maneiras,
diversidade essa que a traz em constante “ser ou não ser”, segundo cogitar poético de
ilustre representante das tragédias de antanho.
Dentre as inumeráveis formas de contar a vida, fui buscar na roça, numa árvore da
roça, na ponta de um galho seco da árvore da roça, o motivo para estas elucubrações
fantasiosas a que, desenvolvido “quantum sátis”, nos orgulhamos, patotisticamente, de
chamar Conto.
Conta-se assim que o Zé Querêncio, sitiante dos bons, dono inconteste de umas terras
agrícolas, altamente dignas de seu trato a poder de enxada, arado, foice e bestas ruanas,
desperta, alta noite –– noite negra como o breu, dizem –– a ouvir, vinda da escuridão
impenetrável, uma voz, ou melhor, uma gargalhada enigmática.
- Ué! Quem é esse cara que se mete a rir, perdido na noite? Alma penada, meu
Deus?
E a risada noturna e soturna bisava, sob a curiosidade da noite toda estrelas – uma
curva e imensa peneira de pingos de ouro invertida sobre a paisagem negra do sítio.
O caboclo encabulava.
Noite seguinte, a semi-sinistra risada encafuada no negrume, surdia novamente. E o
caboclo cismava, cismava, e perdia-se fantasiando a cabeça rústica em mil e uma
interrogações.
- Que será, que não será?
Compadre Vicente, padrinho do caçula, tinha sítio próximo. De uma feita casual
encontro propíciou a Zé Querêncio oportunidade de desfazer a misteriosa “coisa” a
espalhar gargalhadas noite a dentro, noite afora.
- Ché, compadre – adiantou o Vicente. Então você não sabe? Esse estrupício de
risada é o Urutau, o canto do Urutau.
- Verdade, Vicente? Então não é assombração, nada dessas coisas de assustar a
gente?
- Imagine! Passe lá no meu sitioca e eu lhe mostro a “assombração”...
Querêncio foi. E viu!
Viu o Urutau. Um pássaro estranho, da cor de galho seco de árvore. Grudado na
ponta do pau, mimetizado com ele em tudo, viu o dono daquela casquinada noturna,
imóvel como uma estátua, em riste, como se fora a continuação do próprio galho.
- Mas, Vicente, isso aí fala, ri, assusta?
- Claro, compadre – sentenciou o outro.
E dando uma de entendido, desfiou diante do vizinho, atento e embasbacado, tudo
quanto sabia sobre a misteriosa ave.
- Você vê, Querêncio, isso é feio que dói. A feiura, porém, não lhe tira a graça de sair
por aí, por pomares, capões de mato, barrocas ciliares a rir da vida e de nós caipiras,
muitas vezes assustando aqueles que o ignoram e o seu modo de vida: - de dia, como um
monge em oração, como duas mãos unidas em prece, quietinho, garimpado no topo de um
galho de árvore; de noite, voejando pela escuridão, a rir, rir, de “nóis” e a mandar pro
bucho borboletas, mariposas, lacraias, besouros, ratos e tudo quanto invente povoar de
vida os canfundós da roça...
Vicente calou-se um minuto, bateu fósforo e baforou uma nuvem cheirosa extraída do
seu cigarrão de palha, dando uma banana a essa mania civilizada que veta a delícia caipira
de tragar o saboroso fumo de corda do Bairrinho.
Depois, satisfeito o vício, prosseguiu:
- Então, compadre, esse estapafúrdio que você vê, grudado no pico do galho seco, faz
dele moradia e ninho. Mora e cria. Não tece nada. O ovo que bota, único e anual, gruda-o
no ventre, tal e qual a raposa (os cientistas tem um nome para isso) e choca-o sob as penas
do peito, durante 40 a 45 dias. Daí, Querêncio, o filhote nasce e começa a botar a
cabecinha de fora, com medo decerto do mundo grande que vê além das penas maternas.
Depois de duas e pouco mais de semanas, o passarico, que já não cabe mais no seio macio
de plumas, mete-se ao lado do pai ou da mãe, passando o tempo abraçado pelas asas
maternais. Empena, cresce, voa... e sai pelo mundo a povoar novos cumes de novos galhos
secos, de novas árvores...
Compadre Zé Querêncio suspirou profundamente ao calar-se a voz de outro.
Ruminava no íntimo de todas aquelas novidades estranhas sobre um gargalhar noturno que
povoa as noites rurais, nada mais do que um canto ancestral de ave noctívaga, símbolo de
mistério, figura fantasmal do mundo alado do campo e da noite sertaneja!
****
Pingaríamos aqui o ponto final da história. O Zé Querêncio, todavia, não nos deixa. E
não nô-lo deixa porque a sua rude curiosidade nos diz que o Urutau e sua criaturinha não
se deram bem com a vida. Certa manhã, espairecendo pelas terras do compadre, foi até a
“casa” do pássaro para revê-lo e ao seu filhote.
E aí, a tragédia. A ponta do pau seco, vazia. No chão, mãe e filho, estraçalhados. Por
que? Por quem? Mistério! Esses acontecimentos da natureza, são iguais aos
acontecimentos trágicos humanos. Inexplicáveis! Insolúveis!
E a memória querenciana, num retorno repentino aos dias do passado reviu, por
caprichoso e doloroso recordar, num relancear de fatos, a tragédia – tal e qual a do infeliz
Urutau e sua prole – da sua esposa e filho tragados pela fatalidade do infortúnio.
Foi assim.
Temporal inclemente vergastou com o chicote de sua terrível ventania e a fusilaria de
seus raios e trovoadas, horas seguidas, a soberba paineira alcandorada e gloriosa ao lado
da casa, florida de roxo, às vezes; outras, crivada de painas esvoaçantes. Vergastou,
chicoteou, sacudiu raivosamente até que o roble secular cedeu à fúria que o prostrou ao
solo, e, de roldão, tombou sobre o teto da casa, esmagando, sinistramente, a esposa e o
pequeno caçula.
Zé Querêncio – como agora – diante da desgraça, emudeceu, mudamente chorou,
carregando para sempre aquele quadro inominável. Quadro que revivia em toda plenitude,
em dolorosa lembrança, ao contemplar no chão, inertes e destroçados, como sua cara
consorte e seu querido filhinho, inertes e destroçados pela natureza enfurecida e
impiedosa.
Há momentos na vida em que esquecer é o melhor remédio, talvez, o mais profundo
consolo.
Frente a frente com o drama que a manhã roceira lhe apresentara, numa realidade
inarredável, e, frente com a realidade de um passado que não se apaga jamais da
lembrança de qualquer mortal, Zé Querêncio optou pelo alívio medicinal do esquecimento.
Cavalgou o alazão. A galope, se afastou envolto num halo de nostalgia, daquela
paisagem recordativa e entristecedora, daquele inusitado acontecimento a cavar-lhe da
sepultura de um ontem doloroso, a imagem de um quadro que tanto quisera esquecer, mas
viera à tona face a face com aquele infeliz desfecho de um lar alado, desfeito por não se
sabe que mão do destino.
Tal e qual, talvez, a mesma e incomplacente mão terrível que se comprazera em
derruir, inexorável, um Urutau e sua prole, cuja felicidade vivencial se encontra apenas no
pico de um velho e seco galho de árvore. É por isso que a canção popular canta: “Eh! Vida
malvada, não dianta fazer nada, prá que se esforçar se não vale a pena trabalhar”.
Zé Querêncio cavalgou, cavalgou. Esqueceu da vida, esqueceu do mundo. A noite
fechou e o céu desdobrou um dilúvio de estrelas. Contemplou-as por momentos. Ora, lhe
pareciam lágrimas luminosas, ora risos caricatos.
- Para onde vai, compadre? – Perguntou-lhe, no meio da escuridão, a improvisada e
imprevisível presença do Vicente, retornando da vila onde estivera às compras.
Silêncio!
- Para onde vai, repetiu o vizinho.
- Pro inferno, compadre! Pro fim do mundo! “Prum” lugar onde não tem dessas
coisas!...
E castigou a besta que saiu a galope pela cegueira da treva noturna.
O tátátá... tátátá... da cavalgadura enchia lugubremente a imensidão da negra
paisagem, assustando as estrelas piscantes e a lua cheia que o espiava no horizonte
indefinido, qual carantonha enorme a rir de sua desgraça.
De súbito, alguém gargalhou, em casquinada fantasmal dentro do enigma da noite...
Zé Querêncio estacou. Assuntou a vastidão silente e trevosa, cuspiu para o lado, em
protesto contra aquela inoportuna gargalhada e berrou, loucamente, para a paisagem:
- E ainda você dá risada, seu porcaria?!...
Só o eco tristonho dos vales, das florestas, dos montes, respondeu ao protesto do
Querêncio.
O luar pleno banhou de luz macia a vastidão da paisagem.
****
Poder-se-ia encerrar assim e aqui a minúscula história.
Exigem contudo a lógica e a final clareza dos fatos saiba o possível leitor de que
profundez noturna, de que goela estúpida, de que treva cega, de que origem inominada
surdira aquele motejo cabalístico, aquele irônico rir, enegrecendo mais ainda a alma
entenebrecida do infelicitado caboclo.
Para Zé Querêncio, machucado pelas lembranças funestas da fatalidade,
inopinadamente ressuscitadas pelo imprevisto quadro contemplado ao amanhecer, ficava
difícil compreender que tinha um irmão de desdita, que aquele gargalhar dolorido era o
canto de dor que ia n’alma de um pássaro igualmente ferido pela infelicidade.
Ele sobrevivera à tragédia. O Urutau, também. Ambos ficaram sós no mundo,
testemunhas únicas de um lar ditoso, estraçalhado por um terrível destino. Sofriam um e
outro a mesmísssima dor.
Zé Querêncio chorava; o Urutau ria. O homem precisa saber contudo que a natureza e
a vida são contrastantes. O riso do Urutau também é pranto.
Duas, então, eram as vítimas.
Um comentário:
Parabéns, Lino! Gostei da história. Tocou-me especialmente, a mim que moro no campo e ouço sons noturnos ainda bastante misteriosos... É a beleza da mata, da natureza e o que assombro que ela nos causa, sempre! Um forte abraço da Marisa Bueloni
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