
Lino Vitti
“Oh! Santa Cruz da estrada,
santa cruz da encruzilhada,
santa cruz desprezada,
santa cruz do meu rincão,
todas as vezes que chego me apareces,
braços abertos como se estivesses
a pedir-me um abraço e eu dar-te preces
repletas de recordação...”
São versos de um poeta que perambulou muitas vezes pelos caminhos rurais, ora sob o olhar magnífico do sol, ora sob o negror das trevas da noite sem luar ou espiada do alto pelo plenilúnio, e que em tais andanças descobriu sempre as misteriosas cruzes de estrada, denúncias irretorquíveis de que ali, aos pés do quase sempre tosco símbolo do Sacrifício do Calvário, deve repousar o esqueleto vagabundo de um caminhante estradeiro, do comparsa de algum caso amoroso, de um assaltante de caminhos apanhado pela tocaia do inimigo invisível, de um misterioso personagem vindo de plagas distantes e que, a meio caminho, encontrou a alfangedora da vida que lhe decepou os passos e o destino.
A cruz, decantada pelo poema do vate, erguida humilde na forquilha barrancosa da encruzilhada, era cuidadosamente mantida pela piedade dos sitiantes das imediações, embora nem todos conhecessem o porquê ou os porquês de sua existência , de sua longa existência aliás e a maioria dos moradores adjacentes ou passantes por aqueles caminhos que levavam a destinos incertos e misteriosos como os há sempre nas terras , como aquelas de então, tomadas pela selva virgem e enigmática – olhasse para ela com sentido sombrio e às vezes temeroso. Protegiam-na um teto de telhas e paredes de tijolos- um pequenino templo- com o lenho, aberto em cruz, devidamente fincado em soco de pedra, como um altar. Corujas e urutaus vinham desfiar seu canto fúnebre no silêncio da noite, como se a alma penada do soterrado viesse do além para amedrontar os aventureiros viandantes das altas horas, que retornavam dos bailes, dos namoros, das rezas, das serenatas, das visitas aos parentes.
* * *
- Chico – recomendou a mãe - não volte tarde demais. Você
sabe muito bem que depois da meia noite , há assombrações, fantasmas, sacis, e tudo quanto é alma penada... A santa cruz!!!...
- Não, mãe... Volto logo, logo... E não tenho medo de nada
dessas ilusões ... O meu corcel aqui é um pedaço de bom...
E acariciava as crinas do fogoso animal. Cavalgou, o coração prematuramente aos pinotes, só de lembrar que o destino seria a casinha branca e acolhedora, toda transpirando felicidade, em cuja janela – mágico olho a espiar as distâncias campestres - o estaria esperando decerto outro coração aos pinotes como o seu. E lépt...lépt...lépt... partiu rumo ao sítio da namorada, um chuchu de menina, no ponto de ser colhido pelo primeiro aventureiro namoriscador.
Passou pelo morro, pela baixada, pela restinga da mata virgem. A paisagem rutilava sob o olhar do sol da tarde encantadora, dessas tardes que a maioria do mundo não conhece, porque as atenções humanas em geral não sabem ver beleza e poesia numa paisagem da roça, não sabem contemplar um sol que se despede devagarinho , como que saudoso de sua viagem luminosa pelo céu. E lépt...lépt...lépt. Passou pela encruzilhada – fatídica no dizer da mãe . A santa cruz que já assistira à glorificação lucífera da tarde, dormia agora sob a mansidão do luar pleno. Estrelas tremelicavam no céu...
E lépt...lépt...lépt... A casa da namorada sorriu-lhe como uma imensa promessa de amor... De sonho!... De felicidade!..O moço da roça quando ama, ama de verdade. Intensamente...
Mas as horas de amor , de sonho, de felicidade, são ligeiras e voam. Oito, nove, dez, onze horas...meia noite! E o Chico esqueceu a encruzilhada, a santa cruz, os fantasmas, as corujas, o urutau... e até a preocupada mãe, ainda em vigília, à espera do namorador. Só via a sua futura metade, só entendia a linguagem do amor. E como gente da roça não leva relógio consigo, mormente nas horas em que se ama, Chico esqueceu do tempo. E como não há bem que sempre dure, chegou o momento de voltar, de reencontrar o lar, de rever a mãe que ele era, sem dúvida, bom filho.
Abraçou e osculou (namorados roceiros não beijam, osculam) a noiva , triste por ver seu amado partir...
E lépt... lépt...lépt... O corcel comia quilômetros de estrada campestre, ansioso por retornar também ao seu pasto, rolar na grama naquele gesto significativo dos animais que com ele parecem tirar do corpo toda a canseira da viagem. De repente... empinou as orelhas, fungou surdamente, pinoteou e ameaçou deitar fora o cavaleiro. Chico corcoveou sobre a sela, firmou-se nos estribos como pôde, esticou as rédeas e quase vai de ventas para o solo.
-Que é isso, besta...Vamos lá... Bota o casco na estrada...O cavalo não colocou casco nenhum pela estrada a fora. Foi quando Chico botou os olhos assustados sobre a santa cruz, a esta altura, como que iluminada qual um salão de festas. Estava na encruzilhada fatídica. Chico arrepiou –se todo, a besta saltou de lado, querendo retornar... Situação crítica para cavalo e cavaleiro...Todas as histórias fantásticas ouvidas até então começaram a desfilar-lhe pela memória. As bolas enormes luminosas que passeavam pelo espaço em noites escuras, o caso da fera que esperava, à boca da mata, os viandantes noturnos, as gargalhadas misteriosas que ecoavam pelo sertão como se um fantasma se divertisse com as horas altas da noite, e luzes distantes que corriam, retornavam, apagavam-se, rebrilhavam, nas encostas ou nos vales... A espinha de Chico, sempre corajosa, arrepiava e a fronte suava...
O medo, o susto, a crença , diante da fatalidade crescem, crescem, ficam imensos. Onde há o canto de um pássaro, escuta-se a voz de um fantasma! Onde há o estalo de um galho seco supõe-se o passo da assombração! Onde uma chama de vela tremula dentro da treva julga-se ver o incêndio ! Onde a brisa amacia uma fronde ouve-se o assobio do saci!.. Imagine-se então, à meia noite, na boca de uma encruzilhada, onde uma santa cruz - santuário de mistérios- de súbito se ilumina com um clarão enigmático, que sensações não poderia causar àquele solitário personagem e a seu cavalo? O pavor, para dizer o mínimo, toma conta da mente humana, transforma-se de corajosa em covarde, muda o valentão em poltrão, faz de um ser humano um trapo perdido dentro da solidão e da surpresa.
Chico esporeou seu fiel comparsa de aventura que não merecia a pua das esporas, mas como fidelidade de cavalo se equipara à fidelidade do cão, o cavalo pôs-se em brios, voltou ao caminho e lépt...lépt...lépt... partiu como um raio, ecoando seu trote pela noite enluarada a fora, com o amo que , sem olhar para trás, agarradinho à sela e aos estribos, voou e chegou, arquejante, à casa materna, onde a velha o aguardava, ansiosa e feliz por revê-lo são e salvo, embora pálido e suarento.
O leitor amigo, decerto está curioso, não pelo desfecho, mas por aquela luz fantástica e inesperada que iluminou a pequenina capela da santa cruz da encruzilhada. E tem razão ele, pois é próprio da curiosidade saber porque, repentina e estranhamente, surge um clarão a iluminar de vida aquela relíquia simbólica das estradas rurais, como se fora a alma dos mortos aí sepultados, a brotar em luz do chão socado e cheirando à terra, rumando para o céu. Suponha-se você, leitor, numa encruzilhada da roça, sozinho como um ermitão, com a fantasia avolumada pela solidão noturna e o vago iluminar da lua cheia, transformado em testemunha súbito de uma luz enigmática que deixa sair seus raios misteriosos de dentro de uma santa cruz onde foram soterrados caminhantes desconhecidos, peregrinos caminheiros do mundo, pedintes , anciãos, quiçá assassinos e ladrões!!! Ah! É dose cavalar de pavor!
Entretanto, nada mais do que a tênue chamazinha de uma vela, acesa pelo peregrino que escolheu a “santa cruz da estrada, a santa cruz da encruzilhada”, como recitou o poeta, para seu repouso noturno. O viajor porém findou aí seu destino e a luzinha como uma bênção de Deus e que tanto apavorou o Chico namorador, serviu para iluminar- lhe o sono eterno. A santa cruz se fez altar para esse ritual fantástico, porque quem peregrinou a vida toda pelos caminhos desertos e poeirentos , tinha direito a findar seus dias junto a uma cruz de estrada.
O viajante noturno, todavia, que não compreende a graça e a glória da peregrinação pelo mundo, avançando caminhos, repousando e morrendo debaixo dos braços de uma cruz, sob as trevas, sob o luar, sob o frio, os ventos, as chuvas, assusta-se, atemoriza-se, foge espavorido quando uma simples vela tremula ao lado dela para acompanhar a agonia do peregrino que tem nela amiga e companheira na vida e na morte.
O peregrino é a alma dos caminhos ermos e caracoleantes. Seu lar são as cruzes que as estradas colecionam e lhe oferecem para um repouso de uma viagem que não termina nunca, porque a morte também é peregrina e não tem morada certa, caminha pelo mundo como todos os peregrinos e viajores sem destino. E a santa cruz da estrada que o poeta cantou, nada mais seria do que a homenagem aos peregrinos que não se assustam com as histórias, às vezes horripilantes que enfeitam sua vida errante, seu peregrinar sem termos .
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