
Lino Vitti
Ao longo daquele trecho de rua, quase central, a casinha de Zé Minguante assumia
antes o aspecto de casebre. Tão granfinos eram os edifícios de um e de outro lado
erguidos, galgando o espaço, que davam a impressão de se estarem acotovelando para
espiar lá embaixo a humildade da casinhola. Explico as razões do "Minguante". Não era
sobrenome, mas apelido vindo desde a infância, sugerido pela sua extrema pequenez, que,
agora, com a velhice, quase poderia ser classificado entre a família dos anões. É um
divertimento esse do acúmulo dos anos em apequenar as pessoas, certo pelo peso de serem
muitos, acontecendo com o Zé Minguante, nesse particular, o mesmo que acontecia com
sua casinha em relação aos sobrados vizinhos; ambos, casa e proprietário, sentiam-se
asfixiados: um pelo peso dos dias, outro pelo concreto circunvizinho. E toda essa massa,
equilibrada na rigidez arquitetônica das suas linhas, tinha um só dono: Gervásio Cabral,
Dr. Gervásio Cabral.
Bafejado que fora pelas graças da fortuna, esse personagem que se compraz em
dividir as posses a seu bel prazer, presenteando a uns em demasia, a outros comprazendo-se em ser sumamente mofina, - seu Cabral, Moloch de dinheiro, - foi devorando um a um, saboreando lentamente os pratos que a sorte lhe oferecia, todos os prédios daquele quarteirão, transformando-o no aglomerado de residências finas que, também, cautelosamente, ia se apoderando, em avalanche de pedra e cal, das construções vizinhas.
E, uma a uma, desapareciam desfeitas em cacos, mastigadas pelo mastim do progresso as casas acachapadas ao rez do chão. Alguém, porém, resistiu às mandíbulas do dragão: - Zé Minguante.
Não conseguiram arredá-lo de sua choupana as fabulosas ofertas de dr. Cabral. Não,
porque aquele pequeno amontoado de pedras, à feição de presepe entre os arranha-céus,
constituía legado de família, guardava em si o repositório histórico de seus antepassados, era, enfim, o único bem material que os anos não lhe puderam roubar. Além do mais,
servia de ninho aos seus: dona Cesarina, a mulher, e Jovita, a filha, alegria e razão de ser da sua vida.
- Como é, seu Zé, dou Cr$ 200.000,00, insistia o dr. Cabral. E propositadamente
quase lhe raspava o passeio da calçada com a Cadilac reluzente.
- Impossível, dr. Cabral, retrucava a humildade acanhada de Zé Minguante. Seria
vender o coração.
E a Cadilac sumia adiante, doida por aquele cantinho de chão, pois, o dr. Cabral, em
cujo cérebro fervilhava um grande plano industrial, a montagem de uma fábrica
gigantesca, ou cousa que o valha, tinha necessidade dele. Daquela nesguinha de espaço.
E monologava o espírito do homem: “Sujeito teimoso. Pago-lhe bem pago, e não
quer. Mais dias menos dias, boto-o a muque para fora daquela vergonha. Onde se viu
mesquinhez daquela a enfeiar todo o quarteirão”. Buzinava, quebrando a esquina.
Atrás, no entanto, Zé Minguante ficava meditando: “Arre, também, que isso é
demais. Tanta casa, tanto terreno, e ele aí a querer me alijar deste cantinho que é meu. E
prá ir aonde depois? Não. Nem por milhões”. Entrava soturno e pensativo. Lá dentro
vicejava a primavera na beleza e juventude da filha. Rescendia nos 17 anos. Era ela, a bem dizer, o sustentáculo da família. Tresdobrava-se a fim de garantir aos velhos pais alimento e roupa para o corpo; desfazia-se em sorrisos e carinhos, para atenuar-lhes a amargura dos últimos dias.
Entretanto, Jovita era carne e osso. Apesar de uma alma imensa habitar-lhe o corpo,
sentia também o império da mocidade a sacudir-lhe os instintos. Amava. Mas o amor de
Jovita, pelo seu objeto, revestia-se da condição da impossibilidade. Porque o seu príncipe encantado era, nada mais, nada menos, do que o Cabralzinho, filho do dr. Cabral.
Leitor, ou leitora, aí está mais uma artimanha da vida, mais uma forma de que é
pródiga, para espezinhar o ser ou seres humanos. Por que haveria ela, dona dessa imensa sementeira do amor, botar a migalha de uma de suas sementezinhas no coração de Jovita?
Por que?Não sabia acaso a dona vida, que haveria de surgir a ave má do impossível para querer beliscar o rebento da semente mal tentasse romper o solo em que fora lançada? Se o sabia ou não, é difícil dizêrmo-lo, o certo, contudo é que a vida doidivana achou de brincar com o coração do dr. Cabralzinho e lá também enterrou a sementinha fatal. E ali enraizou, cresceu, frondejou e, resultado lógico, passou a namorar Jovita. Amam-se, agora, apesar da divergência e diversidade de classe social, consideradas, por muitos, entrave insuperável para o casamento. Amam-se, porque a mocidade não vê empecilhos ao amor que floresce em seu coração. Infelizmente, porém, nem sempre é fácil. De contínuo esbarra em milhares de tropeços, distendem-se-lhe à frente incontáveis e imprevistas peias, detém-no, travam-no, ameaçam-no, matam-no, muitas vezes.
E qual seria a sorte daquele que apenas desabrochava esperançoso nos dois jovens enamorados? Frutificará? Ou não?
****
Os meses se escoaram. Jovita e o filho do milionário entendiam-se às maravilhas,
forjando projetos, sonhando, furtando, às escondidas, da vida e dos pais, um pouco de
felicidade para a sua juventude. Doiravam castelos, construíam um mundo só para sí, para sua suposta eterna ventura.
Apesar do azul do céu, que os cobria, ao longe, como um ponto a princípio, crescendo ao depois, lenta e pronunciadamente, surgia uma nuvem negra, prenúncio de
tempestade. Que não tardou a chegar, toldar o céu, cair sobre aquele seu mundo em
bátegas vergastantes e tempestuosas. Era a oposição paterna que se fazia presente,
trovejando, esbravejando, derribando ao solo os castelos de ouro de seu amor.
- Como?! Então você, meu filho, (era o dr. Cabral que fuzilava), você a meter-se com
aquele caco de moça, você, multi-milionário, descer a tanto?! Francamente... meu filho,
francamente nego-o, nego-o, ouviste? Queres enlamear a estirpe? Ora, ora... essa é boa!...
Saia furibundo, para voltar logo mais com novas catilinárias sobre o rapaz.
De outro lado, Zé Minguante também esbravejava. Mas as bravatas deste eram, como
não podiam deixar de ser, humildes queixas:
- Jovita, minha filha, porque você fez isso? Não viu que era impossível? Nós somos
pobres, você bem sabe... Essa gente...
Não podia concluir porque o pranto da filha abafava qualquer argumento.
E assim, ao que parece, murchava e morria a linda roseira de sonhos que dona vida,
num de seus momentos de loucura, plantara naqueles corações.
Morria?
Não, não morria!
E não morria porque o espírito ultra-prático e capitalista do dr. Cabral vislumbrava
genialmente uma fresta, uma saída. Digamos, comparando: Cabral despejava sobre a
roseira emurchecida um eflúvio refrescante, o orvalho rejuvenescedor de interesse próprio.
Ora, tão fácil! Como é que não lhe bacorejara no bestunto a mais tempo solução tão a
jeito?...
- Que se amassem, os louquinhos, que se amassem, vá. Mas, (aqui a genial ideia) com
a condição, sine que non, de se pôr abaixo o casebre teimoso. Era o sumo de ocasião: ou
agora, ou nunca. Entre a espada de sua imposição e a parede da felicidade da filha, Zé
Minguante, desta feita, cederia...
E um sorriso sarcástico de vitória lhe vincou de leve a boca burguesa.
****
Foi num misto de espanto, de ódio e de temor, que a notícia estourou lá pelos arraiais
pacíficos de Zé Minguante. Assombro, pelo imprevisto de que se revestiam os
acontecimentos, em face da hipótese armada pelo Cabral: ódio, contra a forma impositiva de que se revestia a solução proposta pelo doutor; aproveitando-se de sua pobreza e da falta de armas iguais para combater; temor, pelas consequências que adviriam, quer aceitando, quer negando as exigências do capitalista.
Este, saboreando charutos, bestificado; estirado sobre um sofá, aguardava, não com
impaciência, mas com laivos de perversa superioridade o resultado da luta em que, a estas horas, se debatiam pai e filha: Zê Minguante e Jovita, ambos coração imenso, disputavam a palma do sacrifício. De um lado, a renúncia ao amor, todo sonhos e primaveras; de outro, a renúncia daquela nesga de chão, daquele amontoado de tijolos humildes, é verdade, mas que representavam para o seu dono, um pedaço de sua própria vida, um naco de sua própria carne. Na íntima arena de Jovita, sobre o tablado de sua luta interior, defrontavam-se - exímios lutadores - o amor filial e o amor ao seu príncipe. Travavam grandiosos duelos, esmurravam-se um ao outro, com intensidade e afã, cada qual tentando curvar a seu favor a vitória.
No coração de Zé Minguante não menor, nem menos intensa ia a batalha. Se adorava
a filha, se valia o sacrifício para vê-la venturosa, o faria, sem dúvidas. Doía-lhe, porém,
como punhalada, a idéia de abandonar a sua casinha, a cuja sombra vivera toda uma
existência, despreocupada e quase feliz.
Bosquejamos assim, nas pinceladas precedentes, o estado de três almas, protagonistas
de um único drama humano, cujo epílogo, nem nós poderíamos prevê-lo e transmiti-lo a
quem nos seguiu os passos ao longo desta narrativa, não fosse a entrada em cena de outro ator, ou melhor de outra atriz, dessa trágica e derradeira personagem de todos os dramas e comédias da humanidade - a morte.
Gervásio Cabral, repentinamente, falecera. Eterna e ferrenha adversária da vida, a
magra colhera-o no exato momento em que aquela que ia propiciar quiçá uma das suas
mais árduas conquistas, pois, o poder do milionário, dono de arranha-céus, para quem tudo fôra fácil conseguir, esbarrara diante da resistência do minguado Zé Minguante.
Gervásio falecido, o herdeiro universal, Cabralzinho, entra na posse de tudo, manda
às favas as convenções e implicâncias paternas e apodera-se também, sem mais aquelas,
daquilo de que mais necessitava o seu coração: Jovita.
Casou e fez questão de que no registro legal do ato constasse: em regime de comunhão de bens, porque assim, pelo sim, pelo não, roubava do Zé Minguante a linda
Jovita, dando a esta em troca entretanto, a possibilidade de uma incomensurável fortuna e àquele, sogro agora, devolvia o sossego para os últimos dias de sua vida.
Sobretudo, aprendiam uns e outros, que tanto a vida como a morte, andam por aí, mundo a fora, a tecer e destecer dramas, e semear toda a sorte de imprevistos, bons e maus, para a pobre humanidade, trazendo-a, de contínuo, em justificados sobressaltos,
Ricos e pobres, Cabrais ou Zés Minguantes, Jovitas e Cabraizinhos, ninguém lhes escapa às tramas fatais.
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