
UM POETA PIRACICABANO
Prof. Silvio de Aguiar Souza
Há bastante tempo que nos vem despertando a atenção um moço piracicabano de excelentes dotes de espírito, e que, como poeta, tem se revelado de uma sensibilidade rara para nossos tempos, manejando a bela arte da poesia, que imortalizou tantos homens. É que a cultura das musas, hoje em dia, tendo passado para esta "AGITAÇÃO SEM GLÓRIA DE TRAFICÂNCIAS E MESQUINHARIAS", como eloqüentemente disse o grande vate que foi Bilac, no seu maravilhoso soneto "Sonho", está relegada ao segundo plano, assim como a da língua portuguêsa, corrompida e abastardada por uma era em que a moralidade e a decência se apagam do seio das multidões e dos indivíduos.
Refiro-me a Lino Vitti, êsse moço nascido aí mesmo, no bairro de Santana, em 1.920, filho de José Vitti, de ascendentes austríacos.
Tendo feito as primeiras letras no Grupo Escolar do mesmo bairro, prosseguiu seus estudos no Colégio Santa Cruz, da vizinha cidade de Rio Claro, onde, furtivamente, cultuava Erato, por lhe ser, ao certo, vedada essa expansão da alma em tal ambiente.
Mas as tendências naturais e espontâneas de um coração não podem caber no silêncio das grades de seu tórax: e explodem, inflamam-se, rebentam, e, uma vez conquistada a liberdade, há um transbordamento de maravilhas, numa inundação de sensações que, muitas vêzes, pensamos tratar-se de forças que o Além nos envia para acoroçoar-nos à luta e desenvolver nossas virtudes latentes.
E é sempre assim. O poeta é um iluminado, porque não existe, em linguagem falada ou escrita, arte que melhor e mais eloqüentemente possa refletir todas as subtilezas e maravilhas da alma humana. . Um simples soneto imortaliza um homem, como imortalizou Bocage, Camões, Bilac, Raimundo Corrêa, Cruz e Souza, e milhares de outros poetas cujos nomes gravamos em nossos corações. Bocage foi um perdulário, mas, se vivia isolado no lodo, quando à tona vinha, "cheias as mãos de pérolas trazia" conforme a vibrante expressão, ainda de nosso amado Bilac, no soneto que ao mestre dedicou: "Tu, que no pego impuro das orgias, Mergulhavas ansioso e descontente, Mas quando à tona vinhas de repente, Cheias, as mãos, de pérolas trazias!"
Eu gosto dos poetas, especialmente quando são revelações como Lino Vitti. Silenciosamente, quase ocultamente, vem incensando a sua musa em uma série de sonetos à qual se poderia chamar de "Bucólicas". Estampou estes ensaios de Lino Vitti o "Jornal de S. Paulo", um dos melhores diários da imprensa paulistana, na secção reservada ao interior. E fê-lo muito bem. Ambos estão de parabéns, porque o incipiente poeta piracicabano nada fica a dever ao "JORNAL" pelo magnífico trabalho que vem realizando, a bem das boas letras, da velha arte sadia e harmônica dos velhos e bons tempos idos e vividos! Hoje em dia, com raras exceções, a poesia sensaborona caminha com o atrito dos gasterópodes, rastejando no solo, na lama de sua própria baba. Tiremos Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo, dois gigantes capazes de todas as maravilhas, e o incentivo à mocidade se esbarra com a mais caótica anarquia, porque poucos conseguem empolgar e convencer nos novos moldes a que se apega a arte de Erato ou de Castália.
Eu, ainda, prefiro as velhas formas surradas e usadas, quando minha imaginação, imperceptivelmente, se dirige para a velha estrada da arte. Só então é que descortino maravilhas e eu respigo, aqui e ali, as pérolas deixadas atrás por êsses semeadores idealistas e sonhadores que já não mais existem e que faziam da boa poesia a gôndola de seus sonhos e amores. Lino Vitti publicou, há dias, um soneto, para o qual eu chamo a atenção dos mestres das belas letras. Este, por exemplo, poderia ser subscrito pelos mestres de outros tempos, sem favor nenhum. É' o “Veleiro do amor”.
VELEIRO DO AMOR
Coração - pobre barco aventureiro -
Pelo oceano do amor, toma cautela.
Pode surgir o vendaval traiçoeiro
Que te arrebate e te estraçalhe a vela.
Perscruta o rumo. Sobre o mar inteiro
Se prepare, talvez, árdua procela.
Busca horizontes claros, meu veleiro,
Onde o sol brilha e o mar não se encapela.
Não te faças ao largo em demasia
Que pode vir a noite e a névoa - zàz -
Pode roubar-te a luz que te alumia.
E então sem rumo, sem farol, sem paz,
Talvez não possas mais voltar, um dia,
À calma praia que ficou atrás.
Veja-se a seqüência, o encadeamento das idéias, a alegoria perfeita, integral, dêste decassílabo, e creio que, dentre os que entendem do assunto, não haverá uma só discrepância quanto à sua perfeição. Digo "dentre os que entendem do assunto" porque quem não entender, não meta a sua colher torta, fazendo personalismo e não crítica sincera, leal, de um trabalho que, em si, encerra tanta subtileza! Isto, quanto à idéia. E, quanto à forma, tem rimas boas, métrica perfeita, correção impecável, o que vem provar que Lino é conhecedor da língua, do seu mecanismo e sintaxe, sem os quais, a poesia pecará pela base.
Outros trabalhos de Lino Vitti: Fazenda, Porteira Antiga, Sol a pino.
FAZENDA
A casa grande. O cafezal sorrindo
Engrinaldado de florinhas brancas.
E as trepadeiras de São João florindo
Pelas cercas ao longo das barrancas.
Do pomar, sob os pés de tamarindo,
Se erguem risadas infantis e francas
E pelo pasto os alazões fugindo
Tremem ao sol as luzidias ancas.
É meio-dia. À porta da senzala
O negro velho uma canção murmura
Que, triste e doce, ao coração nos fala.
Baforando fumaça para a altura
O engenho, todo afã, suando, exala,
Um gosto de garapa e rapadura.
PORTEIRA ANTIGA
Era ali, na saída do terreiro,
Ignoto Prometeu, preso aos mourões,
Que a porteira abre e fecha o dia inteiro,
Jeremiava cruéis lamentações.
Uma tropa, um estranho caminheiro.
O coche, o altivo coche dos patrões.
Um carro gemebundo, um cavaleiro,
Escravos, e, do vento, os safanões,
Ao "nhééé" chorado respondia um "bàà"
Num baque dolorido de canseira.
No mourão grosso de jequitibá.
Porém, jamais como ela houve porteira
E, como ela, jamais outra haverá,
Assim bondosa e franca e hospitaleira.
SOL A PINO
Profuso o sol caustica a natureza.
E no ar treme irisada ofuscação
Qual se a paisagem se encontrasse presa
Dentro de gigantesca bolha de sabão.
Pesadamente cai sobre a devesa
O torpor formidando da estação,
E, ao longe, a areia branca põe, acesa,
Revérberos de luz pelo estradão.
O silêncio acolheu debaixo d'asa
As dependências todas da vivenda
Donde nenhuma fala se extravasa.
Verão. . . Mas, de repente, em algazarras
Acodem os meninos à merenda
E o pomar rompe um coro de cigarras.
É com prazer, pois, que registro o caso extraordinário de aparecer mais um poeta no cenário artístico de Piracicaba. Ao lado dêste, Fábio Rodrigues Mendes é, também, uma boa, grande promessa. Revivamos, pois, um pouco de idealismo sadio nos corações dêstes dois rapazes, e êsse movimento deve ser amparado pela imprensa piracicabana em secção adequada. Penso, aliás, a iniciativa produzirá bons frutos, de vez que haverá incentivo, sem a necessidade de os moços irem buscar, por fora, o que aqui mesmo possuímos, isto é, um lugar ao sol, num ambiente próprio para estenderem as asas de seu estro e galgarem as culminâncias a que fazem jus.
Vejamos se Piracicaba algum dia, deixará de ser madrasta detestável, pois não precisamos ter olhos de mãe amorosa para vermos em Lino Vitti uma grande promessa para as letras piracicabanas, isto é, numa época de tamanha decadência moral e intelectual, em que a boa música se acha transformada no "snobismo" intolerável do "jazz", irradiado aos quatro cantos do universo; a poesia, reduzida à expressão mais simples nos versejadores improvisados e a literatura (ai, meu Deus!) abastardada por um falso delírio de brasilidade preconizado por uns homens que aconselham a língua "brasileira" e escrevem português castiço!
"Língua brasileira? Só para os trouxas", pensam lá, eles, rindo furtivamente. Mesmo porque, não existe! Apertamos a mão a Lino Vitti, animando-o a que prossiga serenamente na bela arte que rebenta de sua alma; com expontaneidade natural que se observa. E aqui estou às suas ordens!
NOTA DE LINO VITTI: Este Prefácio do querido Prof. Silvio de Aguiar Sousa foi publicado no Jornal de Piracicaba, por mim aproveitado, com autorização do prefaciante para apresentação do livro. Conserva a grafia original.
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